Introdução

Na primeira parte do presente ensaio (leia aqui), analisamos que as medidas previstas na Lei Complementar nº 123, de 2006, para conferir tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte, foram instituídas de maneira adicional às normas gerais em matéria de legislação tributária, reservada  à lei complementar pela Constituição Federal. E que o uso social do poder de compras do Estado ou função derivada da contratação pública, já existia antes mesmo da  edição da Lei Complementar nº 123, de 2006. O tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte entra nessa classificação.

Analisamos ainda que, na regulamentação da Lei Complementar nº 147, de 2014, por meio do Decreto nº 8.538, de 6 de outubro de 2015, foram instituídos procedimentos operacionais que visam dar concretude às diretrizes e normas legais já citadas, mas também trouxe dúvidas, como é o caso, por exemplo, da operacionalização da dispensa da exigência de balanço patrimonial, nos casos de bens para pronta entrega. Mas a Constituição Federal fixou como principal diretriz que rege a fixação de exigências de habilitação por parte dos órgãos licitantes, que estas devem se limitar ao que for indispensável à garantia do cumprimento das obrigações. Com isto, a Lei nº 8.666, de 1993, fixou um rol exaustivo de critérios de habilitação, incluindo o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis como documentos possíveis de se exigir no edital da licitação pública.

É através da análise do balanço patrimonial que podemos calcular os indicadores econômicos da empresa licitante, que são úteis para mensurar o seu desenvolvimento econômico e demonstrar parâmetros da saúde da empresa. E como a exigência de balanço nas licitações relaciona-se ao conceito de controle interno da gestão, previsto na Instrução Normativa Conjunta CGU/MP nº 1, de 10 de maio de 2016, a fixação e a análise de critérios de habilitação, incluindo a exigência de balanço, demonstrações contábeis e índices econômicos, devem respeitar o princípio legal da proporcionalidade.

Nesta segunda parte do ensaio, analisaremos a possibilidade jurídica de dispensar a exigência de balanço para as micro e pequenas empresas, constante do Art. 3º do Decreto nº 8.538, de 2015, diferenciando os conceitos de “bens para pronta entrega” ali previsto, do conceito de “compras para entrega imediata”, previsto na Lei nº 8.666, de 1993.

 

Do status dos artigos 42 a 42 da LCP 123

Se observarmos bem, além do estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária, que a Constituição incumbiu exclusivamente à lei complementar, a LCP 123 tratou também de outras normas, estranhas à matéria tributária. Apesar disso, lembremo-nos de que a competência constitucional para legislar sobre normas gerais de licitação, foi concedida privativamente à União. Com isto, podemos identificar pelo menos três correntes básicas de interpretação, cada uma com os seus respectivos fundamentos, a saber:


CORRENTE 1 - Todo o conteúdo da LCP 123 tem status de lei complementar.


CORRENTE 2 - Na parte compreendida entre os artigos 42 a 49, em que a LCP 123 trata de matéria estranha à sua competência constitucional originária, devemos conferir status de norma geral de licitação.


CORRENTE 3 - Na parte compreendida entre os artigos 42 a 49, em que a LCP 123 trata de matéria estranha à sua competência constitucional originária, devemos conferir status de lei ordinária federal.


Em que pese eu particularmente não me filiar à primeira corrente, confesso que não consigo me decidir pela segunda ou terceira corrente. Mas me soa mais simpática a ideia de que os artigos 42 a 49 da LCP 123 possuam status de lei ordinária federal, podendo portanto ser matéria de legislações locais dos estados e municípios, já que não se trataria de norma geral de licitação, cuja competência legislativa é privativa da União.


Mas, independentemente da classificação dos artigos 42 a 49 da LCP 123 como lei complementar, norma geral de licitação ou lei ordinária, fato é que tais dispositivos constam de uma lei vigente, aplicável no mínimo às licitações realizadas por órgãos federais, senão a todos os demais entes, poderes e esferas, a depender do status dado aos artigos 42 a 49 da referida Lei-Complementar.

 

Da regulamentação da LCP 147

 

Em decorrência da edição da LCP 147, que alterou a LCP 123, o chefe do Poder Executivo Federal editou o Decreto nº 8.538, de 2015, que regulamentou detalhadamente a forma como se daria cumprimento ao que fixa a LCP 123 atualizada. E, de maneira algo similar ao que fixou o Art. 42 da LCP 123 - postergando a apresentação das certidões de regularidade fiscal e trabalhista -, o Decreto 8.538 previu a não exigência de balanço da microempresa ou da empresa de pequeno porte, quando da habilitação em determinadas licitações.


Decreto nº 8.538, de 2015 - Art. 3º Na habilitação em licitações para o fornecimento de bens para pronta entrega ou para a locação de materiais, não será exigida da microempresa ou da empresa de pequeno porte a apresentação de balanço patrimonial do último exercício social.


Se, como vimos na parte I deste ensaio, a exigência de balanço, demonstrações contábeis e índices econômicos é uma espécie de controle interno da gestão, que visa mitigar riscos ao garantir a execução do objeto contratado, é de se supor que o afastamento de tal exigência somente seria legítima, caso o risco mapeado seja classificado como irrelevante. E particularmente eu entendo que neste caso a motivação seria exatamente esta.


Tal conclusão decorre da interpretação do conceito de bens para pronta entrega, que seriam aqueles bens “de prateleira”, cuja venda é realizada regularmente no mercado, sem a necessidade de maiores adaptações ou personalizações para atender à necessidade do órgão contratante. Afinal de contas, se estamos falando de bens que, muito provavelmente a empresa já possua no estoque, ou que consiga produzir sem maiores esforços adicionais no sentido de adaptação ao uso, o risco de inexecução do objeto presumivelmente reduz-se bastante. Pois, trata-se de uma obrigação de dar, onde geralmente a mera entrega do bem ao órgão contratante já exaure a obrigação contratual. Quanto à inclusão da locação de materiais, sinceramente não me ocorre qual poderia ser a motivação.


Assim, nas licitações realizadas por órgãos vinculados à regulamentação do Decreto nº 8.538, de 2015, não só podemos como devemos dispensar a exigência de balanço, das licitantes enquadradas como microempresa ou da empresa de pequeno porte. Sem prejuízo da concessão de todos os demais benefícios previstos na legislação para tais empresas.


Do conceito de entrega imediata na lei de licitações e contratos

Possa ser que, ao ler rapidamente o texto do Art. 3º do Decreto nº 8.538, de 2015, alguém conclua que se trata do mesmo conceito previsto na Lei nº 8.666, de 1993, relativo ao prazo de entrega.


Lei nº 8.666, de 1993 - Art. 40.  O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará, obrigatoriamente, o seguinte:

XI - critério de reajuste, que deverá retratar a variação efetiva do custo de produção, admitida a adoção de índices específicos ou setoriais, desde a data prevista para apresentação da proposta, ou do orçamento a que essa proposta se referir, até a data do adimplemento de cada parcela;

XIV - condições de pagamento, prevendo:

c) critério de atualização financeira dos valores a serem pagos, desde a data final do período de adimplemento de cada parcela até a data do efetivo pagamento;

§ 4o  Nas compras para entrega imediata, assim entendidas aquelas com prazo de entrega até trinta dias da data prevista para apresentação da proposta, poderão ser dispensadas:

I - o disposto no inciso XI deste artigo;

II - a atualização financeira a que se refere a alínea "c" do inciso XIV deste artigo, correspondente ao período compreendido entre as datas do adimplemento e a prevista para o pagamento, desde que não superior a quinze dias.


No entanto, nota-se que o próprio conteúdo da lei nos traz informações que, a meu ver, ilustram claramente a finalidade de tal dispositivo. No caso, trata-se de hipótese legal de afastamento dos dispositivos editalícios que tratam do reajuste e da atualização financeira, dos valores constantes da proposta. Se observarmos que o conceito de entrega imediata vincula-se ao prazo de entrega de até trinta dias, contado da apresentação da proposta, passa a fazer todo sentido o afastamento da previsão de reajuste ou atualização financeira, pois é na verdade um prazo bastante curto, mesmo para o contexto econômico inflacionário existente no momento da edição da lei.


Importante frisar que, desde o início da implementação do Plano Real, por meio da Medida Provisória nº 434, de 27 de fevereiro de 1994[1], passou-se a exigir o interregno mínimo de um ano, para fins de reajuste dos valores contratados pela Administração Pública. Isto a meu ver derroga tacitamente, pelo menos de forma parcial, a norma constante do citado dispositivo da Lei nº 8.666, de 1993. É que, com a estabilidade econômica do país, passou a ser possível prever reajuste somente após transcorrido um ano da apresentação da proposta, sem que isto inviabilizasse a execução do objeto contratual. Isto seria impensável em um cenário de inflação galopante, como se verificou no período de 1993, quando a Lei nº 8.666 foi editada, até a implantação do Plano Real.

 


Medida Provisória nº 434, de 1994 - Art. 11. Nos contratos celebrados em URV, a partir de 1º de março de 1994, inclusive, é permitido estipular cláusula de reajuste de valores por índice de preços ou por índice que reflita a variação ponderada dos custos dos insumos utilizados, desde que sua periodicidade seja anual.

§ 1º É nula, de pleno direito e não surtirá nenhum efeito, cláusula de reajuste de valores cuja periodicidade seja inferior a um ano.

Art. 12. É nula, de pleno direito e não surtirá nenhum efeito nos contratos a que se refere o artigo anterior, a estipulação de cláusula de revisão contratual com periodicidade inferior a um ano.

 

Após duas reedições, a Medida Provisória nº 434, de 1994, foi convertida na Lei nº 8.880, de 27 de maio de 1994[2], que manteve a referida regra, que foi repetida também na Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995[3], e na Lei nº 10.192, de 14 de fevereiro de 2001[4]. Toda vigentes até o presente momento.

Se levarmos em conta que a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, fixa a obrigatoriedade da Administração Pública obedecer ao princípio da finalidade, de maneira que devemos sempre garantir que, na interpretação da norma administrativa se garanta o atendimento do fim público a que ela se dirige, me parece possível concluir que o conceito de bens de pronta entrega previsto no Decreto nº 8.538, de 2015, não se confunde com o conceito de entrega imediata, previsto na Lei nº 8.666, de 1993, já que cada um deles possui uma finalidade distinta.


Conclusões

Ao editar a Lei Complementar nº 123, de 2006, além do estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária, que a Constituição incumbiu exclusivamente à lei complementar, o Congresso Nacional tratou também de outras normas, estranhas à matéria tributária. Assim, os artigos 42 a 49 da LCP 123 não são matéria que clamam por Lei Complementar, não tendo portanto esse status.

Como a competência constitucional para legislar sobre normas gerais de licitação foi concedida privativamente à União, pode-se no máximo atribuir tal status aos artigos 42 a 49 da LCP 123, mas a mim parece mais razoável a ideia de que os artigos 42 a 49 da LCP 123 possuam status de lei ordinária federal, podendo portanto ser matéria de legislações locais dos estados e municípios, já que não se trataria de norma geral de licitação, cuja competência legislativa é privativa da União.


Após a edição da Lei Complementar nº 147, de 2014, que alterou a LCP 123, o chefe do Poder Executivo Federal editou o Decreto nº 8.538, de 2015, que regulamentou detalhadamente a forma como se daria cumprimento ao que fixa a LCP 123 atualizada, trazendo, dentre outras regras, a não exigência de balanço da microempresa ou da empresa de pequeno porte, quando da habilitação em determinadas licitações.


A melhor interpretação do conceito de bens para pronta entrega é que estes seriam bens “de prateleira”, cuja venda é realizada regularmente no mercado, sem a necessidade de maiores adaptações ou personalizações para atender à necessidade do órgão contratante, trazendo um menor risco de inexecução contratual e, em decorrência disto, permitiu-se a não exigência do balanço da microempresa ou da empresa de pequeno porte.

 

Já o conceito de entrega imediata da Lei nº 8.666, de 1993, vincula-se ao prazo de entrega de até trinta dias, contado da apresentação da proposta. Assim, faz todo sentido o afastamento da previsão de reajuste ou atualização financeira, pois é na verdade um prazo bastante curto, mesmo para o contexto econômico inflacionário existente no momento da edição da lei.


Desde o início da implementação do Plano Real, por meio da Medida Provisória nº 434, de 27 de fevereiro de 1994, passou-se a exigir o interregno mínimo de um ano, para fins de reajuste dos valores contratados pela Administração Pública. Isto a meu ver derroga tacitamente, pelo menos de forma parcial, a norma constante do citado dispositivo da Lei nº 8.666, de 1993.


Levando em conta que a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, fixa a obrigatoriedade da Administração Pública obedecer ao princípio da finalidade, de maneira que devemos sempre garantir que, na interpretação da norma administrativa se garanta o atendimento do fim público a que ela se dirige, é possível concluir que o conceito de bens de pronta entrega previsto no Decreto nº 8.538, de 2015, não se confunde com o conceito de entrega imediata, previsto na Lei nº 8.666, de 1993, já que cada um deles possui uma finalidade distinta.

Referências

[1] Dispõe sobre o Programa de Estabilização Econômica, o Sistema Monetário Nacional, institui a Unidade Real de Valor (URV) e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/MPV/1990-1995/434.htm

 

[2] Dispõe sobre o Programa de Estabilização Econômica e o Sistema Monetário Nacional, institui a Unidade Real de Valor (URV) e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/LEIS/L8880.htm

 

[3] Dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras e condições de emissão do REAL e os critérios para conversão das obrigações para o REAL, e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9069.htm

 

[4] Dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10192.htm#:~:text=%C2%A7%201o%20%C3%89%20nula,a%20anterior%20revis%C3%A3o%20tiver%20ocorrido.

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