em 22/03/2021
  • A exigência de balanço da microempresa ou da empresa de pequeno porte nas licita

Introdução


O tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, foi previsto na Constituição Federal de 1988 como norma geral em matéria de legislação tributária,cujo estabelecimento ficou reservado à lei complementar[1].


Muitos anos depois, ao instituir o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, através da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006[2], o legislador incluiu também algumas medidas adicionais, para conferir tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte, nas contratações públicas da administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e municipal. Tais medidas objetivam a promoção do desenvolvimento econômico e social, no âmbito municipal e regional, além da ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica, conforme redação atualizada pela Lei Complementar nº 147, de 7 de agosto de 2014[3].


Quando da edição da Lei Complementar nº 123, de 2006,  já não era novidade o uso das contratações públicas e do poder de compras do Estado, como meio para a implementação  de políticas públicas. Tal possibilidade é detalhada pela professora Marina Fontão Zago, em seu livro “Poder de compra estatal como instrumento de políticas públicas?”, editado pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap)[4]. Em sua obra ela analisa o que denomina de função derivada da contratação pública, que representa a atribuição de uma finalidade nova e adicional à função primária da contratação, como por exemplo a instituição de obrigações ou preferências que incidam especificamente sobre as contratações públicas, como é exatamente o caso do tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte, previstos na Lei Complementar nº 123.


Na regulamentação da Lei Complementar nº 147, de 2014, por meio do Decreto nº 8.538, de 6 de outubro de 2015[5], expedido pelo chefe do Poder Executivo Federal, foram instituídos procedimentos operacionais que visam dar concretude às diretrizes e normas legais já citadas. Porém, tal regulamento trouxe algumas dúvidas para os operadores do direito administrativo aplicado à contratação pública, como é o caso do dispositivo constante do Art. 3º do referido regulamento.


Decreto nº 8.538, de 2015 - Art. 3º Na habilitação em licitações para o fornecimento de bens para pronta entrega ou para a locação de materiais, não será exigida da microempresa ou da empresa de pequeno porte a apresentação de balanço patrimonial do último exercício social.


O que exatamente significa tal disposição regulamentar, e como operacionalizá-la na prática? É o que pretendo discutir no presente texto, que foi didaticamente dividido em duas partes, para melhor aproveitamento da leitura.

 

A finalidade da exigência do balanço nas licitações


Desde o momento em que fixou a licitação como regra, a Constituição Federal já trouxe diretrizes e limites, para que a Administração Pública adote controles e procedimentos, que visem a “garantia do cumprimento das obrigações” contratuais, por parte das empresas licitantes.


Constituição Federal - Art. 37, XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.


É relevante notar, que tal previsão já constava da redação original da Carta Cidadã, antes mesmo do advento da reforma, implementada através da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998[6], que inseriu a eficiência no rol de princípios, aos quais toda a Administração Pública deve obediência.


Ao regulamentar tal dispositivo constitucional, através da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993[7], o legislador previu um rol exaustivo de exigências de habilitação, das quais a Administração Pública poderia lançar mão em seus certames licitatórios. O uso na Lei nº 8.666, de 1993, de expressões como “exclusivamente”, “consistirá em” e  “limitar-se-á”, alinha-se à expressão “indispensáveis”, constante do Art. 37, XXI da Constituição. E denota que a Administração Pública deve limitar a fixação de exigências habilitatórias, incluindo no instrumento convocatório somente aquelas que forem estritamente necessárias, sempre no intuito de se alcançar o cumprimento da finalidade para a qual foram criadas, que é a “garantia do cumprimento das obrigações”.


Também na Lei nº 8.666, de 1993, dentre os dispositivos que tratam da qualificação econômico-financeira, identificamos que o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis integram o rol de documentos que a Administração Pública poderá exigir das empresas licitantes em geral.


É através do balanço patrimonial que podemos calcular os chamados indicadores econômicos. Segundo o Sebrae[8], tais indicadores são úteis “para mensurar o desenvolvimento econômico da empresa”, pois “demonstram parâmetros da saúde da empresa”. E assim, ao aferir a qualificação econômico-financeira da licitante, a Administração Pública obtém informações que permitem inferir que aquela empresa conseguirá cumprir o contrato, sem maiores riscos de inexecução.

Portanto, a fixação e posterior análise do cumprimento de indicadores econômicos, e a exigência de balanço nas licitações, reveste-se de aspectos relacionados ao conceito de controle interno da gestão, como podemos conferir na Instrução Normativa Conjunta CGU/MP nº 1, de 10 de maio de 2016[9], que disciplina o assunto no âmbito do Sistema Federal de Controle Interno.


Instrução Normativa Conjunta CGU/MP nº 1, de 2016 - Art. 2o Para fins desta Instrução Normativa, considera-se:

V - controles internos da gestão: conjunto de regras, procedimentos,diretrizes, protocolos, rotinas de sistemas informatizados, conferências e trâmites de documentos e informações, entre outros, operacionalizados de forma integrada pela direção e pelo corpo de servidores das organizações, destinados a enfrentar os riscos e fornecer segurança razoável de que, na consecução da missão da entidade, os seguintes objetivos gerais serão alcançados:

a - execução ordenada, ética, econômica, eficiente e eficaz das operações;

b - cumprimento das obrigações de accountability;

c - cumprimento das leis e regulamentos aplicáveis; e

d - salvaguarda dos recursos para evitar perdas, mau uso e danos. O estabelecimento de controles internos no âmbito da gestão pública visa essencialmente aumentar a probabilidade de que os objetivos e metas estabelecidos sejam alcançados, de forma eficaz, eficiente,efetiva e econômica;


E em se tratando de controles internos, devemos sempre tratá-los no âmbito da gestão de riscos institucionais, de maneira a garantir que eles não sejam insuficientes nem excessivos, ou injustificadamente onerosos. A propósito, o comprometimento da execução orçamentária por problemas na licitação é expressamente tipificado como risco pelo referido normativo.

Instrução Normativa Conjunta CGU/MP nº 1, de 2016 - Art. 18. Os órgãos e entidades, ao efetuarem o mapeamento e avaliação dos riscos, deverão considerar, entre outras possíveis, as seguintes tipologias de riscos:

d) riscos financeiros/orçamentários: eventos que podem comprometer a capacidade do órgão ou entidade de contar com os recursos orçamentários e financeiros necessários à realização de suas atividades, ou eventos que possam comprometer a própria execução orçamentária, como atrasos no cronograma de licitações.

 

Por fim, é salutar destacar que, assim como todos os demais controles, a fixação e a análise de critérios de habilitação, incluso a exigência de balanço, demonstrações contábeis e índices econômicos, devem respeitar o princípio da proporcionalidade, positivado no ordenamento jurídico desde o Decreto-Lei nº 200, de 5 de fevereiro de 1967[10], e repetido quase com o mesmo sentido na norma de controles internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo federal.

Instrução Normativa Conjunta CGU/MP nº 1, de 2016 - Art. 14. A gestão de riscos do órgão ou entidade observará os seguintes princípios:

III - estabelecimento de procedimentos de controle interno proporcionais ao risco, observada a relação custo-benefício, é destinado a agregar valor à organização;

 

Na segunda parte do presente texto, analisaremos a possibilidade jurídica de dispensar a exigência de balanço para as micro e pequenas empresas, constante do Art. 3º do Decreto nº 8.538, de 2015, diferenciando os conceitos de “bens para pronta entrega” ali previsto, do conceito de “compras para entrega imediata”, previsto na Lei nº 8.666, de 1993.

 

Conclusões

 

As medidas previstas na Lei Complementar nº 123, de 2006, para conferir tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte, foram instituídas de maneira adicional às normas gerais em matéria de legislação tributária, reservada  à lei complementar pela Constituição Federal.


O uso social do poder de compras do Estado ou função derivada da contratação pública, já existia antes mesmo da  edição da Lei Complementar nº 123, de 2006. O tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte entra nessa classificação.


Na regulamentação da Lei Complementar nº 147, de 2014, por meio do Decreto nº 8.538, de 6 de outubro de 2015[11], foram instituídos procedimentos operacionais que visam dar concretude às diretrizes e normas legais já citadas, mas também trouxe dúvidas, como é o 

caso, por exemplo, da operacionalização da dispensa da exigência de balanço patrimonial, nos casos de bens para pronta entrega.


A Constituição Federal fixou a principal diretriz que rege a fixação de exigências de habilitação por parte dos órgãos licitantes. Estas devem se limitar ao que for indispensável à garantia do cumprimento das obrigações.


A Lei nº 8.666, de 1993, fixou um rol exaustivo de critérios de habilitação, incluindo o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis como documentos possíveis de se exigir no edital da licitação pública.


Através da análise do balanço patrimonial, podemos calcular os indicadores econômicos da empresa licitante, que são úteis para mensurar o seu desenvolvimento econômico e demonstrar parâmetros da saúde da empresa.


A fixação e posterior análise do cumprimento de indicadores econômicos, e a exigência de balanço nas licitações, relaciona-se ao conceito de controle interno da gestão, previsto na Instrução Normativa Conjunta CGU/MP nº 1, de 10 de maio de 2016.


A fixação e a análise de critérios de habilitação, incluindo a exigência de balanço, demonstrações contábeis e índices econômicos, devem respeitar o princípio legal da proporcionalidade.

 

REFERÊNCIAS 

[1]Art. 146. Cabe à lei complementar:
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art146

 [2]Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; altera dispositivos das Leis no 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, da Lei no 10.189, de 14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar no 63, de 11 de janeiro de 1990; e revoga as Leis no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e 9.841, de 5 de outubro de 1999.

 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp123.htm

 [3]Altera a Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006, e as Leis nos 5.889, de 8 de junho de 1973, 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, 9.099, de 26 de setembro de 1995, 11.598, de 3 de dezembro de 2007, 8.934, de 18 de novembro de 1994, 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e 8.666, de 21 de junho de 1993; e dá outras providências.

 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp147.htm#art1

[4]Disponível para download gratuito em https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/4347/1/Livro_Poder_compra_estatal.pdf

 [5]Regulamenta o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado para microempresas, empresas de pequeno porte, agricultores familiares, produtores rurais pessoa física, microempreendedores individuais e sociedades cooperativas nas contratações públicas de bens, serviços e obras no âmbito da administração pública federal.

 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8538.htm

[6]Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências.

 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc19.htm

[7]Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.

 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm

 [8]Os indicadores econômicos são medidas de desempenho utilizadas para mensurar o desenvolvimento econômico da empresa. Expressos através de índices demonstram parâmetros da saúde da empresa e permitem comparativos de desempenho entre diferentes períodos, de maneira a avaliar o resultado atual em relação a outros períodos históricos.

 Disponível em https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/pr/artigos/como-fazer-uma-analise-financeira,d6b1288acc58d510VgnVCM1000004c00210aRCRD

[9]Dispõe sobre controles internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo federal.

Disponível em https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/21519355/do1-2016-05-11-instrucao-normativa-conjunta-n-1-de-10-de-maio-de-2016-21519197

[10]Art. 14. O trabalho administrativo será racionalizado mediante simplificação de processos e supressão de contrôles que se evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco.

 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0200.htm

[11]Regulamenta o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado para microempresas, empresas de pequeno porte, agricultores familiares, produtores rurais pessoa física, microempreendedores individuais e sociedades cooperativas nas contratações públicas de bens, serviços e obras no âmbito da administração pública federal.

 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8538.htm

 

 

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